O que 
o corpo 
significa

de Andréa Carvalho

Nudez total! Todo prazer  
Provém de um corpo  
(como a alma sem corpo)
sem  vestes.
John Donne, Elegia XX, 
tradução de Augusto de Campos

Talvez devêssemos começar por uma negação: sobre o que corpo não é, sobre o que ele não apresenta. O corpo não é um conforto. O corpo não é um equilíbrio. O corpo não apresenta afirmações. Nos esforçamos para afirmá-lo, seja através da arte, do desejo, da fantasia. Mas seu destino é sempre ser uma negação. E um conflito.  

Pois devemos mesmo é começar do corpo ao falar da arte em relação a esse tema tão vasto - sexo -  e, contrariamente, visto ainda sob restrições.  

"A sexualidade humana é essencialmente traumática", diz Joyce Mac Dougall. Talvez toda arte produzida sobre esse tema ou não seja um esforço para superar o trauma.  É um quebra-cabeça no qual somos lançados sem escolha. Tentamos sobreviver e ganhar algum fruto (uma maçã talvez).

O erotismo é definido como uma intenção de sensualidade, mas  em um mundo calcado na banalidade, onde a rotinização da transgressão acaba destruindo a real possibilidade da transgressão, como pensou Michel Foucault, o que significa isso? Arte erótica: duvido deste gênero.  

Ao pensar sobre as relações entre arte e sexo, primeiramente nos vem a mente toda a literatura escrita por mulheres do século passado. Mulheres malditas, transgressoras, literatura sem legitimação cultural na época em que foram produzidas. Interessante como a arte que lida com a palavra escrita trabalhou esse tema. Na literatura escrita por mulheres, a voz poética é denunciadora da interdição ao sexo e ao prazer. Essa é a linha de investigação considerada por Nelly Novaes Coelho no ensaio  "O erotismo na literatura feminina do início do século XX, da submissão ao desafio ao cânone" (http://www.hottopos.com/vdletras3/nelly.htm). 

A ensaísta investiga a obra de Colombina (São Paulo), Gabriela Mistral (Chile), Gilka Machado (Rio de Janeiro), Juana de Ibarbourou (Uruguay) e Florbela Espanca(Portugal), escritoras nascidas na década de 1910, em contextos e lugares diferentes. Elas, segundo Coelho, "pioneiramente, se assumiram como transgressoras do cânone fundante da civilização cristã-burguesa: o interdito ao sexo." Acrescenta ainda: "o desafio primeiro que todas elas lançaram ao "interdito ao pecado da carne" foi o de assumir o pecado, como um mal ao qual era impossível resistir".

Também lembro da Ilha dos Amores (IX,  68-95) do poema épico "Os Lusíadas" (1572) de Luis de Camões.

Nesse momento do épico, Vasco da Gama e seus nautas regressam a Portugal de sua viagem para a Índia. A Ilha  dará  a "recompensa" que merecem  pela viagem bem sucedida. O encontro dos Portugueses e as Ninfas é pautado na sensualidade: Deusas nuas estão se lavando e quando os homens se aproximam, elas se escondem porém "aos olhos dando/ O que às mãos cobiçosas vão negando":  

    Outros, por outra parte, vão topar
    Com as Deusas despidas, que se lavam;
    Elas começam súbito a gritar,
    Como que assalto tal não esperavam.
    Hüas, fingindo menos estimar
    A vergonha que a força, se lançavam
    Nuas por entre o mato, aos olhos dando
    O que às mãos cobiçosas vão negando.(IX, 72)

O prêmio é o prazer. Nesse cenário mítico, os Portugueses seduzem as Ninfas e conquistam o sexo, como as terras descobertas. O soldado Leonardo busca sua Ninfa, apesar de um destino de má sorte no amor:    

    Leonardo, soldado bem disposto,
    Manhoso, cavaleiro e namorado,
    A quem Amor não dera um só desgosto,
    Mas sempre fora dele mal tratado,
    E tinha já por firme prossuposto
    Ser com amores mal-afortunado,
    Porém não que perdesse a esperança
    De inda poder seu Fado ter mudança;
     
    Quis aqui sua ventura que corria
    Após Efire, exemplo de beleza
    Que mais caro que as outras dar queria
    O que deu, pera dar-se, a Natureza.
    Já cansado, correndo, lhe dizia:
    «Ó fermosura indigna de aspereza,
    Pois desta vida te concedo a palma,
    Espera um corpo de quem levas a alma! (IX,75-76)

Desfazendo-se em "puro amor", a Ninfa se rende ao soldado, cujo destino se modifica:

    Já não fugia a bela Ninfa tanto
    Por se dar cara ao triste que a seguia,
    Como por ti ouvindo o doce canto,
    As namoradas mágoas que dizia.
    Volvendo o rosto já, sereno e santo,
    Toda banhada em riso e alegria,
    Cair se deixa aos pés do vencedor,
    Que todo se desfaz em puro amor. (IX, 82)

Os "Sonetti Lussuriosi" (1525) de Pietro Aretino (1492-1556) é uma poesia que não traz a perplexidade do amor-paixão. Conforme diz José Paulo Paes, tradutor e autor do ensaio crítico da edição brasileira dos "Sonetti":

A voz que ouvimos nos "Sonetti Lussuriosi" não é a voz da Cabeça, a comprazer-se em elegâncias metafóricas para manifestar os desconcertos, perplexidades e insatisfações do amor-paixão, mas a voz do Corpo recorrendo à brutalidade do grito para extravasar as larvas do amor-luxúria.  

A voz poética é associada ao prazer, utilizando-se de um vocabulário chulo como elemento próprio da composição literária. Se considerarmos essa característica sob os paradigmas culturais da Renascença italiana, muito entenderemos aquela realidade: o possível de viver e impossível de dizer em meios que não sejam o escárnio e o humor:  

    Tens-me o pau na boceta, o cu me vês;
    Vejo-te o cu tal como ele foi feito.
    Dirás que do juízo sou suspeito
    Porque nos pés eu tenho as mãos, em vez.
     
    Mas se em tal modo de foder tu crês,
    Confia em mim, assim não será feito,
    Porque eu na foda bem melhor me ajeito  
    Se meu peito do teu sente a nudez
     
    Ao pé da letra quero-vos foder
    O cu, comadre, em fúria tão daninha
    Com dedo, com caralho e com mexer,
     
    Que vosso gozo nunca se definha.
    Pois não sei que é dulcíssimo prazer
    Provar deusas, princesas ou rainha?
     
    Mas direis, escarninha,
    Que embora eu seja em tão mister sublime
    O ter pouco caralho me deprime. 
    (Soneto 7, tradução de José Paulo Paes)  

John Donne(1572-1631) está distante desse escárnio e humor lascivo  dos "Sonetti" de Aretino, especialmente a "Elegia XX. Indo para o leito".  Deste poema, com a tradução magistral de Augusto de Campos (que utilizaremos nas citações abaixo), Péricles Cavalcanti compôs uma música, interpretada por Caetano Veloso deliciosamente no álbum "Cinema Transcendental".   

Mas o poema é mais comovente do que a canção. John Donne foi um religioso inglês, padre da igreja anglicana, deão da catedral de São Pedro em 1621. Um dos poetas metafísicos trazidos ao século XX por T.S. Eliot. Na poesia de John Donne, uma das características é o êxtase explicitamente sexual, construído através de jogos de palavras associados à metáforas incomuns.  

Nesse poema, a mulher é comparada à nova terra - a América - virgem, cheia de mistérios, nua, por onde mãos errantes exploram no desejo de conquista:

    Deixa que a minha mão errante adentre
    Atrás, na frente,  em cima, embaixo, entre.
    Minha América! Minha terra à vista,
    Reino de paz que um homem só a conquista,
    Minha mina preciosa, meu Império!
    Feliz de quem penetre o teu mistério!
    Liberto-me ficando teu escravo,
    Onde cai minha mão, meu selo gravo.

A mulher, matéria do amor carnal, também é um livro místico, e para poucos fornece/ permite a sua leitura/prazer:   

    Como encadernação vistosa, feita  
    Para iletrados, a mulher se enfeita;
    Mas ela é um livro místico e somente
    A alguns (a que tal graça se consente)
    É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
    Como se diante da parteira abre-
    Te: atira, sim, o linho branco fora,
    Nem penitência nem decência agora.
    Para ensinar-te eu me desnudo antes:
    A coberta de um homem te é bastante.  

Na literatura brasileira contemporânea impossível não citar Hilda Hilst (1930-2004). A poetisa que estabelece os lugares do corpo e da alma no poema "Do desejo":

    E por que haverias de querer minha alma
    Na tua cama?
    Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
    Obscenas, porque era assim que gostávamos.
    Mas não menti gozo prazer lascívia
    Nem omiti que a alma está além, buscando
    Aquele Outro. E te repito: por que haverias
    De querer minha alma na tua cama?
    Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
    Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Como saída às intermináveis recusas de editoras em publicar sua obra dita "séria", a escritora lançou-se nesse tema no início da década de 90, escrevendo uma trilogia: "O Caderno Rosa de Lori Lamby" (1990), "Textos Grotescos" (1990) e "Cartas de um Sedutor" (1991).  

"O Caderno Rosa de Lori Lamby", uma "divertida bandalheira" (segundo definição da autora),é um romance em primeira pessoa narrado por uma menina de 8 anos que escreve em seu diário (o caderno rosa) sua fantasia imaginativa sobre sexo, absorvendo influências de seu pai, um escritor de contos eróticos. O polêmico romance foi adaptado para teatro (com a  atriz Iara Jamra) e para o cinema pelo diretor Sung Sfai em 2005.      

São fantasias da menina ou de nós mesmos? A espetacular construção literária de Hilda Hilst nos provoca essa pergunta. A garota parece brincar com a imaginação, misturando realidade, alguma informação e fantasia. A excitação é nossa, não dela:  

    Eu contei pro papi que gosto muito de ser lambida, mas parece que ele nem me escutou, e se eu pudesse eu ficava muito tempo na minha caminha com as pernas abertas mas parece que não pode porque faz mal, e porque tem isso da hora. É só uma hora, quando é mais, a gente ganha mais dinheiro, mas não é todo mundo que tem tanto dinheiro assim pra lamber. O moço falou que quando ele voltar vai trazer umas meias furadinhas pretas pra eu botar. Eu pedi pra ele trazer meias cor-de-rosa porque eu gosto muito de cor-de-rosa e se ele trazer eu disse que vou lamber o piupiu dele bastante tempo, mesmo sem chocolate. Ele disse que eu era uma putinha muito linda. Ele quis também que eu voltasse pra cama outra vez, mas já tinha passado uma hora e tem uma campainha quando a gente fica mais de uma hora no quarto. Aí ele só pediu pra dar um beijo no meu buraquinho lá atrás, eu deixei, ele pôs a língua no meu buraquinho e eu não queria que ele tirasse a língua, mas a campainha tocou de novo.  

Recentemente uma polêmica entre o diretor José Celso Martinez Correa e o ator Paulo Autran esteve nas páginas do jornal Folha de São Paulo. Tudo começou quando em uma entrevista("Autran não perdoa ninguém e agrada a todos" , Ilustrada,  30/11/2005), o ator declarou que não achava que dois atores se masturbando em um palco era teatro, em referência ao espetáculo "Os Sertões", do diretor José Celso e seu grupo Uzyna Uzona

José Celso é um diretor visceral, corajoso, e por isso tudo, polêmico. Independente se há ou não orgasmos no palco, nus ou o que quer que seja, seus espetáculos são capazes de nos tirar fora de órbita (eu já me encontrei com Dionisius em uma de suas peças: "As bacantes").  

Paulo Autran é um ator respeitado no Brasil, pelo seu trabalho no teatro, no cinema e na televisão. Um cânone da arte da interpretação cuja carreira já é um capítulo na história do teatro brasileiro nos últimos 50 anos.  

A peça de José Celso é adaptação de um livro que narra a guerra de Canudos – "Os Sertões"de Euclides da Cunha  - conflito no sertão de Alagoas entre a recente declarada República e um grupo de religiosos liderado por Antonio Conselheiro. Euclides da Cunha era repórter na ocasião e narrou em livro o que viu e viveu.  

José Celso (em Folha de São Paulo - Réplica: Quem tem medo de masturbação masculina? - 12/12/2005) responde a Autran, revelando que o ator, apesar de não ter assistido ao espetáculo, se detém somente no "tabu da masturbação":  

    (...) no tempo da duração fugaz de um gozo, uns três minutos numa peça de seis horas: "A Luta 2". Mariano Matos, grande jovem ator, cria uma obra de arte de atuação com a personagem do seu soldado acordando no meio de um sonho de amor, atacado pelos jagunços e atingido no momento de sua "petite mort", o gozo.  

Usar a temática sexual só para chocar, atualmente, é uma escolha ingênua. Certamente, não foi essa a intenção de José Celso. Como ele bem explica:  

    A divina masturbação para Jean Genet, para nós, é totem. Está na base de todo trabalho do subtexto livre e soberano do ator de gênio, que sabe provocar sua imaginação a partir dos seus prazeres, sonhos e desejos mais viscerais e livres. Quem sabe praticar a oração meditação, a masturbação, começa a se conhecer, saber de seu desejo, sabe dar espírito, alma ao seu Eros, fazer passar por seu corpo o corpo das personagens e dar-lhe o mais precioso, seu tesão elétrico, para que a personagem seja dada sensual, táctil, teatral, livre e viva para o público.

Mas o diretor arrisca-se em um caminho perigoso, a platéia pode captar um subtexto dúbio. Representar qualquer metáfora sexual em um mundo cujos olhos e sentidos já estão acostumados às mesmas mensagens, anestesia nossa sensibilidade à beleza/sentido que se pode exprimir. O desafio é inaugurar novos significados para o que já está vazio de significado.  

Quem não segue por esse caminho dúbio é a diretora Ana Kfouri. Em "Volúpia", em cartaz no Brasil entre 1998 e 1999, a diretora partiu de uma série de autores diversos que escreveram - de uma forma ou outra - sobre sexo, para criar um espetáculo forte que não se entregava ao lugar comum. "Volúpia" faz parte dos sete pecados capitais que a diretora pretende levar ao palco, já houve as encenações "Gula" e "Preguiça".  "Ira" é o pautado para 2007.   

Agora Kfouri está em cartaz até 29 de janeiro de 2006, no Sesc Copacabana, RJ, 

com "Esfincter", e a sua Companhia Teatral do Movimento.  A partir dos textos "Carta aos Atores" e "Discurso aos Animais: A Inquietude", do autor francês Valère Novarina, a encenação de Kfouri serve à proposta do autor: o teatro como  lugar onde se percebe as palavras e a fala como um corpo, mas não mais aquele visto como instrumento de expressão - e sim um corpo movimentado e sangrado por seu próprio mecanismo interno.  

Segundo a diretora, há a intenção de intensificar as possibilidades de relação entre o artista e o público e potencializar a comunicação entre eles. Ao certo, deseja ela comunicar um certo "sentimento de realidade".  

Nos espetáculos de Kfouri, corpos nus em cena e palavras pungentes é um procedimento ou como diz Henry Miller sobre a obscenidade na arte: "o elemento deliberado que nela [na arte] se encontra nada tem a ver com a excitação sexual, como é o caso da pornografia. (...) Seu  fito é despertar, comunicar um sentimento da realidade".

A arte precisa trazer a expressão desse sentimento. É um lugar onde podemos obter uma experiência, provocando os sentidos em uníssono, mesmo falando de política ou de cotidianidades.  

Segundo Pablo Picasso:

    A arte nunca é casta. Deveriam mantê-la longe de todos os inocentes ignorantes, nunca permitindo o contato com aqueles que não estão suficientemente preparados. Sim, a Arte é perigosa. Onde é casta não é Arte.  

Ou se não excita o corpo à mover-se, através da provocação e percepção de sentidos, não é arte que se preze.

Cover Image-from Kfouri's "Esfincter"

Andréa Carvalho é produtora e escritora

©2006 Andréa Carvalho
©2006 Publication Scene4 Magazine

 

 

 

february 2006
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